quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Conto de Eclipse Phase: Ausência (Parte 1)

Este conto foi traduzido do conto de abertura do RPG Eclipse Phase, e será dividido em algumas partes devido a ser um conto bem extenso. Eclipse Phase é um RPG de temática pós-apocalíptica, conspiração e horror, além de aborda a filosofia do trans-humanismo, além de seguir com ideias de cyberpunk, questionamentos sobre o que é ser humano,  limitações éticas e toda corrupção humana.





- Que data é?

As palavras enfiaram suas garras em minhas novas cordas vocais e saíram se arrastando de minha garganta seca. Minha dicção é previsivelmente ruim, como sempre o é durante os primeiros minutos depois de um reentrada. O timbre da voz é evidente, apesar da péssima dicção e gaguejar. Definitivamente um biomorfo, e meu sexo atual é feminino. Tudo isso descubro nos primeiros segundos. O modelo me escapa neste momento, mas em breve o saberei com certeza, uma vez que seja capaz de me mover como queira. Minha primeira aposta é outro morfo fúria.

A maca está fria. Nada mais que metal congelado envolto com uma tela crocante sintética que o cobre.  Alojamentos típico de uma casa de bonecas corporativas. O frio atravessa minha pele e se estabelece em meus ossos.

Um processador de pilha aparece sobre mim, movendo de um lado ao outro sua luz de "bem-vindo", aterrizando ocasionalmente em minhas pupilas. O rosto elegante e entediado fala: - Consciência confirmada. - Se desliga a luz. Minha pergunta deveria ter deixado claro  que estou de volta, mas o cara é um escravo do procedimento. Todos os são. Os bancos de corpos corporativos gostariam que seus empregados estejam paralisados pela obediência. Incapazes de pensar por si mesmo. Gaguejo minha pergunta novamente.


- Que data é?


- 11 de Março.


- Quanto desde a Queda?


- Tais de sacanagem?


Sim, sou paranoico. Cada vez que me encontro outra vez sobre a maca de um banco de corpos, preciso saber o ano. A paranoia não é mais que outra das pragas as quais a trans-humanidade enfrenta neste dias.

Tento obter os dados partir dos implantes de malha de minha nova casca antes de abrir novamente minha boca. Não tenho sorte. Sempre acaba sendo humilhante perguntar o ano a um técnico de cascas. Me faz sentir como um viciado, mas sem espaço para duvidas há circunstancias amenizantes, assim que o pressiono. A fundo.

- Responda a merda da pergunta.

A lesma corporativa me olha como se estivesse louco antes de responder.

- É... 10 DQ. Não estiveste tanto tempo fora. Teu ultimo backup foi...

Ele olha seus entópticos  em busca da informação

-... faz 14 dias e 7 horas.

Demora um segundo em entrar na cabeça, mas ao faze-lo, dói. Sempre me intimida, que me fuja tempo. Duas semanas. Perdidas. Completamente apagadas de minha existência. Faz duas semanas eu era outro eu, colocado em outro morfo. Teve uma missão, e me levou a morte. Isso é tudo o que sei. Ou Firewall não conseguiu recuperar a pilha cortical de meu cadáver para que pudesse recuperar essas duas semanas, ou os filhos da puta decidiram eliminar esse tempo de mim. No entanto, sendo sincero, a duas opções são preferíveis a que haja a outro eu andando por ai, fazendo quem merda saiba o que. A alguns t-humanos adoram ter vários "eu" dando voltas por todas as partes, mas eu mantenho sobre controle meu ego. Um único Sava já é miséria suficiente para soltar no universo.

Merda. Meu cérebro começa a dar voltas por territórios idiotas; sempre o faz ao principio, depois de uma reentrada. Preciso um contexto físico. Algo tangível sobre o que centrar minha atenção. Ponho as mãos diante dos meus olhos, e meus braços parecem sacos de pedras de duas toneladas. Os dedos são longos e finos; as articulações são cheias de calos, com cicatrizes e desfigurados. Evidentemente resultado de muitos socos, punhos lançados contras mandibulas, metal... carne. Um morfo fúria muito usado. Te dão o que pagas, suponho; ou o que Firewall esteja disposto a pagar. Porque o faço? No que respeita a organização, sou um pouco mais que um instrumento de precisão barata, que se coloca no reciclador quando se quebra. Sempre terá mais iguais a mim, até que os horrores sejam intensos demais, até que os arquivos sejam corrompidos demais, até que saiba demais e Firewall decida se desfazer de mim, e logo outro idiota dará um passo a frente para preservar a transumanidade. Preservar a transumanidade. Fantástico. Agora gaguejo como um idiota propagandista de Firewall! Meus braços se enfraquecem e caem para os lados. Simplesmente, ainda não tenho força.  Uns quantos minutos mais sem nada além de meus pensamentos.

Enquanto sai da sala de recuperação, o processador de pilhas ri diante de minhas fracas tentativas para mover-me. - Que pressa tens? - diz. - Relaxe um pouco, desejas? Se cairés no chão, vais ficar ali até que possa te levantar tu mesmo. Não me pagam o bastante como para fazer de babá. - Sua frieza não melhora meu estado de animo, e retorna a melancolia.



Que experiencias deixaram de formar parte de minha consciência? Talvez algo irrepetível. Descobri a verdadeira beleza? Me apaixonei? Tive uma epifania? Salvei uma vida? Nunca o saberei. Essas lembranças, essa vida, essa versão de mim, tem desaparecido. O novo eu, que jaz nesta maca, não foi moldado por estas experiencias. Meu peito se afunda com o peso da perda.

Tenho que pensar em outra coisa.

Que se foda. Provavelmente não houve alegria, nem revelações.  Foram duas semanas de merda. Estou seguro. Fiquei entediado até fica cansado.  Melhor ainda,  destroçado e sofrendo como consequência de uma angústia de proporções épicas.  Minha morte não teve sentido. Sofri uma overdose de adrenalina,  e fiquei no chão tremendo em um frenesi acelerado até que explodiu meu coração. Algum ladrão escória me esfaqueou no corredor de uma estação por algum RX de baixa resolução do mercado negro. Me alegro que apagaram esse tempo.  Que se foda.  Que se fodam. Não preciso dessas duas semanas. 

Mas estes pensamentos são mentiras. Preciso dessas duas semanas. Não me sinto completo sem elas. Merda, me sinto incompleto sem elas. Merda, me sinto incompleto mesmo sacrificando uma hora. Tenho que saber.

Alguém deve saber o que ocorreu. Sem dúvida. Talvez um proxy de Firewall, provavelmente Jesper. Era meu contato, desta vez. Isso o recordo. O apagamento poderia ser coisa sua. E os proxies tem um gatilho fácil na hora de apagar os sentinelas. Nem sequer uma reputação ganha a força de suor e sangue poderia salvar minhas lembranças, se Firewall considere que os resultados de uma missão são delicados demais para que os possua um capanga de baixo nível como eu. Contanto que se faça a merda do trabalho. Contanto que a trans-humanidade sobreviva.

Merda de trabalho.

Como terminou minha vida, como terminarão minhas vidas, assim? Sempre nas mãos dos outros.

Outra vez o medo, a paranoia. Tenho que livrar-me dele. Tenho que dar a organização p benefício da dúvida. Tenho sido sentinela durante décadas. Quero pensar que tenho salvado milhares de vidas, mas simplesmente não tenho certeza.

Confio na organização? Não, mas temos um acordo, um certo grau de respeito. Ainda que de acordo passem os anos, e os buracos se fazem maiores e mais frequentes. Começo a ter minhas dúvidas sobre o compromisso de Firewall pela minha sobrevivência.

De repente, minha musa se espreguiça, acabando com minhas fantasias. Várias apresentações entópticas aparecem em meu campo de visão, passando por rotinas de diagnósticos ao ativar-se finalmente meus implantes da malha. A familiar voz feminina de Careza entrando na minha mente.

[Bem-vindo de volta, Sava] 

O som é tranquilizador; como ser balançado por minha mãe, ou abraçado por uma amante. A potencialização harmônica foi um investimento que valeu a pena. Careza aprendeu a usar bem. Rara vez penso em minha musa como uma AI. Nestes dias é minha única amiga. Me pergunto se sente o mesmo. Nunca lhe enviei esse pensamento. O mantenho para mim. Tenho medo de qual poderia ser sua resposta.

- Hey Careza. Me alegro de estar de volta.

[Suspeito que te viria bem algo para beber]

- Me conheces bem demais, Car. Melhor do que me conheço eu mesmo.

[O departamento da hospitalidade já tem a petição. Tempo de espera, aproximadamente dez minutos.]

Obrigado. A Careza gosta das conversações que temos quando meu cérebro está ligeiramente intoxicado. Sempre está tentando que me embebede.


[Não há de que. Antes que perguntes, passarão duas semanas. Não tenho informação sobre o que aconteceu depois de nossa última reentrada. Atualmente nós encontramos em órbita entorno da Lua a bordo do Selardi IV. Estamos dentro de um morfo fúria da marca CoreCorp com melhoras menores. Serão ativadas em breve. Me alegro de informar que os Titaneses saíram vitoriosos e venceram a Copa.]  

- Merda poderia ter ganhado um monte com isso.  Como estavam as apostas?  -  Mas antes que Careza possa encontrar a informação, cancelo a operação. -  Não.  Espera.  Não quero saber.  Só ficarei mais irritado.  -  Uma energia nervosa  começa a percorrer todo meu sistema e um intenso sabor familiar começa a cobrir minha garganta. -  Preciso de um cigarro

[Sim,  o sei.  O usuário anterior deste morto era um viciado em nicotina.  É provável que seja difícil eliminar o hábito desta vez.]

Cada minuto que passa estou gostando mais e mais desta reentrada. Odeio fumar. O negócio de beber passa.  Posso suportar álcool,  mas fumar sempre me fez sentir como uma merda.  Cada vez que acabo a reentrada em um morfo com essa esse vício,  me esforço para desintoxicar-lo. Clareza continua com seu informe enquanto tento recuperar minha sanidade diante um forte desejo de nicotina. 


[Teu rep—@ continua intacta.]


- Por fim boas notícias. Ao menos não irritei nenhum aliado durante as últimas duas semanas. 

[Sem dúvida.  Estais em um estado de animo adequado para uma atualização sobre Rati?]

Rati é minha paixão.  A amante que considero acima de tudo.  Desapareceu faz dois anos.  Sem explicações.  Ainda dói.


- Deixemos a atualização para depois,  Careza. 


[Entendido]

- De uma olhada nos grupos de notícias. Procure algum incidente importante nas últimas duas semanas. Talvez haja alguma pista sobre o que pudéssemos estar fazendo. 


Enquanto Careza faz a procura e continua com seu informe normal da situação, coloco minha atenção para a nova casca.  Finalmente tenho força suficiente para erguer-me. Empurro o morfo para cima e movo os pés por cima do chão. Espasmos percorrem todos os músculos. Sempre faz falta algo de tempo para acostumar-se a um novo morfo. Por sorte, estou familiarizado com a fúria de CoreCorp, já fui reentrado em alguns no passado. Este se sente como um par de sapatos velhos, um pouco gastos e usados, mas bem capaz de chutar o pavimento se surgir a necessidade. O tornozelo esquerdo parece estar um pouco delicado. O levanto um pouco para dar uma olhada. Está um pouco inchado. Definitivamente não é um caso de dismorfia por uma casca nova. Provavelmente uma ferida chata. Outra vez, uma surpresa, mas levas o que pagas, suponho. A nanotatuagem que rodeia o bíceps direito é longo e desagradável, mesmo para os padrões da escoria: uma serpente inteira entrando nos genitais de uma bainha de prazer feminina, completamente animada. Não importa mais a ti, fosses quem fosses o que decidiu gravar isso neste morfo. Odeio as marcas identificáveis, mas uma vez mais, se não podes te permitir um morfo limpo, pegas o que tem.


Saio fora da maca, conseguindo não cair de cara no processo, e comprovando cuidadosamente o tornozelo. Dói, mas não fará que eu cais.

- Envie um pedido para um reparo, tornozelo esquerdo. Buta deveria valer.

[Fenilbutazona. Está há caminho. E o coquetel chegara em aproximadamente 30 segundos. Não há nada fora do comum nas notícias.]

Era o esperado

Caminho com dificuldade até o espelho de corpo inteiro que sempre há nas câmeras de reentrada, e solto o lençol para dar uma olhada no novo eu. Vejo o processador de pilhas esperando na porta, com meu coquetel na mão, enquanto examina meu corpo com um olhar apreciativo. Não me reconheço.

- Me alcance minha bebida, por favor. - Estendo minha mão em sua direção sem sequer confirmar sua presença. O homem dá um passo para dentro da habitação, proximo demais de mim, e coloca a bebida na mão. Seu alento tem cheiro de uma salsicha estragada.

- Não parece estar nada mal debaixo do lençol, certo? - diz - Olhei antes, mas devo dizer que a maca não te fazia justiça. De pé, as curvas chamam a atenção. Não que tua cara seja algo do outro mundo, mas essas curvas...

O corto antes que encha minha boca com bílis. - É de bom gosto. O sei. Agora cala a boca e sai antes de que eu arranque a pele de sua cara e te nocauteie com ela. - Capta a ideia e cai fora da habitação.

- A verdade é que é um bom par

[Se “bom” está definido por suas proporções, então diria que sim]

Inteligências artificiais, sempre tão formais.

[Tua altura é aproximadamente 4 centímetros maior do que permite tua propriocepção normal. Cuidado com la cabeça.]

- Obrigado pelo aviso. O terei na cabeça.

[Isso foi péssimo.]

- Já, já, o sei. - Um sorriso acaba aparecendo em minha cara enquanto a brincadeiras com minha AI tiram o gelo da situação. Olhando-me ao espelho, tento aumentar o sorriso, para ter uma melhor ideia de como é minha nova cara. Mostro alguns dentes. Manchas de nicotina em todos eles. Bebo um trago de meu coquetel, e movo um pouco o álcool em minha boca. Posso sentir como meu sangue reage de forma instantânea. Fecho os olhos e solto um suspiro. Uns instantes de paz, é tudo o que peço.

[Temos um convidado, Sava] Merda, não tenho sorte.

-Quem?

[Jesper, nosso último proxy de Firewall, enviou uma duplicata de si mesmo de nível beta. Mostra certa impaciência por falar contigo.]

- Conecte-o.

Não podem me deixar em paz, verdade? Oficialmente, Firewall nem sequer existe. É culpa de Rati que me alcançaram. Aquela encrenca em Marte. Ali é onde começou tudo.  A última vez que vi a Rati. Essas lembranças eles permitiram que eu os tivesse. Mas, porque? Até aquele dia, nunca tinha percebido quão assustador era realmente o universo. Não, assustador não. Aterrorizante. Não há outra palavra para descrever algo tão vasto, tão indiferente. A trans-humanidade poderia ser aniquilada por completo, e tudo continuaria como sempre. Aterrorizante. Não há outra forma de explicar o sentimento que tens quando te enfrentas cara a cara com coisas que estão realmente além da tua capacidade de compressão. Foda, nenhum outro termo poderia cobrir as ações que os transumanos fazem uns aos outros, muito menos o que poderíamos fazer  outros seres que espreitem no vazio. Talvez foi por isso. Para ensinar-me uma lição. Para assegurar que nunca esqueceria, para que nunca deixa-se a organização, porque até mesmo o mais leve vislumbre do que há na realidade ai fora é mais que suficiente.

A duplicata de Jesper se materializa no meu campo de visão.

[Bem-vindo de novo, Sava]


- Te fode, Jesper. Você sabe que odeio me levantar com lack.

[Lamento. Não posso fazer nada.] Sua expressão é séria e preocupada, mas suas reações gestuais me indica que está tão calmo como pode estar. Pequena atuação! Os putos proxies nunca se fodem. Tem todas as cartas e nunca são suas mentes que estão em risco.

- Tá. Claro. Direto ao ponto. Não terias me colocado em um morfo de combate para que tenha algum tempo livre, assim que deve ser algo serio. Berk, Pivo e Sarlo estão aqui?

[Sim, também foram reentrados na mesma instalação.]


Pelo menos minha equipe está aqui. Gente com a qual posso contar. Até certo ponto.

- De acordo. Qual é a situação?

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